Vita Brevis


Terminei de ler hoje o livro Vita Brevis - A Carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho, com certeza um dos mais incríveis que já li.

Escrito por Jostein Gaarder - o mesmo de O Mundo de Sofia, que ainda estou lendo - Vita Brevis é o resultado da tradução que Jostein fez de um maniscrito que adquiriu na Argentina em 1995, que supostamente seria uma carta de uma mulher chamada Flória Emília para um certo Aurélio Agostinho, ou "Aurel", ou ainda "Lelinho", como ela mesma se refere. Acontece que "Lelinho" é ninguém menos que Santo Agostinho, bispo católico e um dos pais da Igreja Cristã, e pode-se dizer um dos pilares do cristianismo como instituição.

Agostinho, que é conhecido pela distinção que faz entre corpo e alma, é o destinatário dessa suposta carta escrita por Flória, que seria a amante que ele teve durante sua juventude, antes de exercer o episcopado. Agostinho faz referência a essa amante em suas Confissões, mas não cita seu nome, e fala muito pouco nela, fazendo apenas uma referência ao filho que teve com essa mulher, Adeodato. Em suas confissões, Agostinho trata do tempo que se apaixonou como se fosse um tempo em que se dedicou à uma vida de pecado e permissividade. Para ele, o fato de ter se entregado à paixão o afastou de Deus, e o celibato foi sua salvação. Não poucas vezes Agostinho trata em suas Confissões da dificuldade que teve em prosseguir com seu celibato, por conta dos desejos sexuais. Ele mesmo fala que por várias vezes tinha "sonhos impuros, que pareciam reais". Mas exalta sua renegação, fazendo disso um mérito que conquistou junto a Deus.

Pois bem, se é verdade que toda história tem dois lados, Vita Brevis é o outro lado da história do Agostinho apaixonado. Flória Emília se revela uma mulher agora estudada, conhecedora das cartas de São Paulo e da filosofia. Mas acima de tudo é uma mulher magoada. Sente-se traída pelo homem que várias vezes lhe jurou amor, e a quem amou intensamente. E Flória deixa bem clara sua mágoa: afirma que seria muito masi facil saber que havia sifo trocada por outra mulher, mas Agostinho a havia deixado para viver uma vida de celibato. Logo Agostinho, que era um homem altamente sedutor - segundo Flória.

Flória questiona com muito conhecimento cada uma das doutrinas que até hoje são pilares do cristianismo, como o celibato, a renegação dos prazeres sexuais, e até mesmo a visao católica de Deus. Chega ao ponto de dizer que o deus pregado por Agostinho não existe, já que foi Deus quem criou homem e mulher com órgãos sexuais e com o dom de amar e se deixar ser amado. Pede ainda que o Deus verdadeiro perdoe Agostinho por se devotar a um deus tão diferente daquilo que realmente Ele é: um Deus que ama e que gosta de ver seus filhos amando. Flória é uma mulher muito, muito magoada.

A veracidade da carta é questionada. O Vaticano não reconhece o Codex Floriae nem a existência de uma mulher chamada Flória, o que ja era de se esperar. Mas, seja verdadeira ou nao, Vita Brevis é uma lição de religião: é um tapa na cara do sistema religioso que criou um deus altamente manipulador, que controla cada detalhe do universo e que não se importa com os sentimentos humanos. O Deus que Flória acredita é diferente. Começa pelo simples fato de dar a ela o benefício da dúvida de sua própria existência. Por mais de uma vez ela se refere a Deus como "se é que Ele existe mesmo". Além disso, o Deus em que Flória crê não assume controle da vida de ninguém, muito pelo contrário: entrega a cada um a liberdade e responsabilidade pela própria vida. Flória acredita num "Deus amoroso, que nos criou para o mundo, para que vivamos aqui", sem esperanças falsas de futuros celestiais nem de dias melhores. Para Flória, o momento é agora, daí ela insistir tanto na vita brevis: pode ser que realmente não haja nada além dessa vida que vivemos. E aí, como estamos gastando nosso tempo? Aproveitando daquilo que a vida tem a nos oferecer, como o amor, o prazer sexual, a convivência entre pessoas que amamos, ou renegando todos esses prazeres em nome de uma religiosidade manipuladora que não leva a lugar nenhum a não ser o sofrimento barato?

Não sabemos se a carta é verdadeira. E caso seja, não sabemos se Agostinho leu a carta, não sabemos nem se Flória realmente enviou a ele essa carta. Não sabemos qual a reação dos demais bispos ao saberem da carta, se é que ficaram sabendo. Flória diz na carta ter medo da reação da Igreja à sua carta. Talvez o mundo nunca saberá se Agostinho leu essa carta. Mas ela tem força o suficiente para dar respostas a muitos questionamentos internos de muita gente enraizada nos bancos das igrejas pelo mundo. Senão para dar respostas, pelo menos encoraja a fazer perguntas. Perguntas que Flória não teve medo de fazer.

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