Jesus já voltou. E nós o matamos novamente




Um dos pilares da fé cristã é a crença de que, algum dia, Jesus Cristo irá voltar ao mundo. A forma como isso se dará varia de acordo com cada vertente cristã, mas todas creem nisso: em um determinado momento, Jesus não só virá a esse mundo novamente como irá levar embora todos os que são fieis - acontecimento que os protestantes chamam de "arrebatamento". 

A verdade é que Jesus já voltou. Esteve entre nós. E mais uma vez o matamos. 

No dia de Natal - por coincidência, o dia escolhido para se comemorar o nascimento de Jesus - um homem foi assassinado dentro da estação Pedro II do metrô de São Paulo. Dois homens bêbados o agrediram até a morte. O motivo: o homem tentou defender uma travesti que, não fosse por ele, provavelmente seria a vítima da noite. 

Esse homem, um senhor simples e de poucas posses, morreu por tentar defender um marginalizado, morador de rua. Esse homem, que ninguém sequer sabia existir antes do ocorrido, arriscou a própria pele para defender a dignidade de uma travesti que ele provavelmente não conhecia, e que ninguém até agora sabe quem é. 

Alguma semelhança entre as duas histórias?

E, assim como há dois mil anos atrás, nós o matamos novamente. "Nós?", alguns vão perguntar. Sim, nós. Um dos assassinos disse não ser uma "má pessoa". Claro, para ele não há nada de errado agredir uma travesti, é apenas uma bicha. A intenção dele era pegar só a "bicha". O velho entrou no meio e acabou sendo vítima do "impulso" de um homem "bom", quer queria pegar "só uma bicha". Quem se importa com um "traveco", ainda mais um traveco morador de rua, provavelmente com mau cheiro e mal vestido? Quem liga pra pessoas assim? O velho ligou. Enquanto o velho era covardemente agredido, uma pequena multidão se aglomerou em volta, sem que nenhuma pessoa tentasse pelo menos segurar os agressores. Eram várias pessoas, conseguiriam segurar, se quisessem. Enquanto o velho era covardemente agredido, nenhum segurança do metrô sequer desconfiou da ação; talvez estivessem mais ocupados espantando algum ambulante vendendo bala Halls em algum vagão. Enquanto o velho era covardemente agredido, câmeras registravam a ação, sem que ninguém se mobilizasse para o que estava acontecendo. Só depois do velho morto é que o socorro apareceu, que a indignação surgiu, que o sentimento de justiça veio à tona novamente na sociedade. Só depois do acontecido. Enquanto acontecia ninguém moveu um dedo. 

Notou mais alguma semelhança entre as duas histórias?

Esses dois assassinos representam a nós todos. Nos representam quando defendemos a morte de pessoas que consideramos dispensáveis na sociedade - lembrem: a intenção deles não era matar o velho, eles queriam pegar a travesti. Nos representam quando dizemos que "bandido bom é bandido morto", mesmo sem definir bem o que consideramos ser um "bandido". Nos representam quando decidimos nossas diferenças no "olho por olho", na vingança cega. Nos representam quando separamos as pessoas em escalas, sendo que umas estão acima e outras abaixo, e as que estão abaixo não merecem qualquer atenção, apenas nosso ódio. Os seguranças do metrô nos representam também. Nos representam quando somos indiferentes à luta dos que não conhecemos, por estarem "distantes demais". Nos representam quando preferimos coisas a pessoas. Nos representam quando fugimos à nossa obrigação e preferimos algo menor, de pouca importância. 

Jesus já voltou ao mundo. Na verdade ele volta todos os dias. Ele toma ônibus com você, ele entra no metrô, ele se senta ao lado na praça, ele pisa no seu pé na rua, esbarra em você e derruba sua pipoca no chão. Jesus está em Aleppo, na Uganda, no Iêmen, na Brasilândia, na rua paralela à da sua casa. 

O ambulante foi um Jesus que matamos. O matamos porque ele, mais uma vez, defendeu um marginalizado. Matamos mais um Jesus. Quantos mais mataremos? 

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