#Livros: A Menina Sem Qualidades - Juli Zeh


Terminei de ler essa semana - depois de meses - um dos romances alemães mais populares da Europa. A Menina Sem Qualidades é, na verdade, um retrato da juventude europeia atual e da crise moral que esses jovens enfrentam. 

Ada é uma menina problemática. As 14 anos, já foi expulsa de um colégio, filha de um casamento destruído e de uma mãe neurótica. Se diz adepta do niilismo - não acredita em qualquer sentimento, em significado da vida, em nada, além de um eterno e inquietante vazio que "preenche" nossos dias e nos conduz a uma vida vazia em busca de um sentido que nunca será encontrado. Para Ada a busca pela identidade, pela estabilidade ou pela aceitação são desnecessárias: somos seres vazios que vivem num mundo sem qualquer explicação plausível para as coisas, já que elas não tem uma razão de ser. Alev, meio grego meio árabe, é uma versão ainda mais exagerada e descrente: sua paixão pelo vazio o torna quase um psicopata, que não vê prêmios nas boas ações nem punições para as más ações. Para Ada e Alev não existem bem e mal, já que não existe alguém que estabeleça essas regras. Alev acredita ainda ser possível a dominação de qualquer pessoa desde que se use as ferramentas adequadas. Alev acredita na vida como um jogo, mas um jogo em que não se busca resultados e não se tem perdedores ou ganhadores, apenas o prazer de jogar, mesmo que esse jogo destrua a vida dos envolvidos. Smutek é um professor polonês, professor de alemão de Ada e Alev, ex-militante nos tempos de ferro da história da Polônia que tenta construir uma família normal com sua "Branca de Neve", sua linda esposa que não quer sequer ouvir falar na Polônia, terra que matou cruelmente seus pais. Smutek é apenas mais um imigrante que busca uma vida tranquila num país diferente. O país é a Alemanha. O cenário de toda essa trama é o Colégio Ernst Bloch, administrado pelo temido Teuter que nunca simpatizou com Ada e tenta encontrar uma forma de tirá-la do colégio.

É nessa contradição de histórias que a vida de Ada, Alev e Smutek se encontram. Ada e Alev se unem e se tornam cada vez mais descrentes, cada vez mais analíticos e mais críticos. Juntos, traçam um jogo em que uma pessoa seria totalmente dominada por eles e obedeceria qualquer ordem que eles dessem, mesmo que essas ordens fossem de encontro a qualquer valor moral, religioso ou social. A vítima escolhida para esse jogo é Smutek, que eles consideram a peça perfeita para o jogo. Sem perceber, Smutek é envolvido num jogo perigoso de sedução entre ele e Ada, não sem antes ser avisado por colegas de trabalho, e acaba se vendo vítima de uma conspiração feita por dois jovens sem qualquer escrúpulos.

Como disse no começo, A Menina Sem Qualidades é mais que um simples romance. É uma denúncia de uma sociedade totalmente desprovida de senso de responsabilidade e de preocupação com o futuro. Numa época em que qualquer jovem com acesso a internet tem à disposição informação de todo tipo e acabam por se tornar mais informados que seus professores, incutir valores morais torna-se missão de guerra. Ada e Alev se classificam como "bisnetos dos niilistas", já que se os niilistas criticavam a noção de valores e de moral, os dois jovens questionam até mesmo a existência de tais valores. A Menina Sem Qualidades vai nas fronteiras da moral e trás ao debate conceitos pouco tratados, como o sentido da vida. Uma das frases mais marcantes do livro é "se tudo isso for um jogo, então estamos perdidos". E é assim que Ada e Alev encaram a vida: como um jogo. Mas, se Alev é um jovem impotente sexualmente mas de personalidade forte, Ada, por mais que tente se mostrar como uma garota de convicções firmes, é na verdade uma adolescente altamente influenciável, que se deixa levar pela eloquência do novo amigo / namorado.

O livro é quase todo baseado em O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Em certos momento o livro de Juli Zeh parece ser uma extensão do livro de Musil, já que as tramas se confundem entre si. Foi do livro de Musil que saiu o nome da tradução brasileira.

O livro é de leitura difícil. É preciso cabeça aberta e disposição para reflexão enquanto se lê o livro. Por ser um romance alemão cheio de jogos de palavras no original, a tradução em português acabou por perder boa parte do sentido dessas brincadeiras que Juli Zeh adora fazer com suas histórias. A dificuldade na tradução começou pelo título original do livro: Spieltrieb, que seria algo como "pulsão ao jogo". Além do mais, spiel em alemão faz referência à jogar no sentido de brincar como crianças, uma ironia bastante interessante com o conteúdo do livro, mas que se perde totalmente na tradução.

Se você tem dificuldades com leituras mais difíceis, mais analíticas, com certeza terá dificuldades com A Menina Sem Qualidades. Mas a leitura vale a pena, principalmente quando se trata de entender certos conceitos pouco discutidos.

E sim, esse livro serviu de base para a série de mesmo nome da MTV. Vi a série e achei a adaptação bem interessante. Claro que por se tratar de um romance alemão que envolve Alemanha e Polônia, os redatores da série acharam melhor tentar aproximar a trama da nossa realidade. Sendo assim, Ada virou Ana, Alev virou Alex e Smutek virou Tristão, um argentino que dá aula de literatura. O resto da trama permaneceu igual ao original. A série só pecou por tentar tratar de um assunto tão complexo, com diálogos tão profundos em episódios de apenas 20 minutos, o que acabou por tornar a série cansativa para quem não está acostumado com esse tipo de diálogo. Mas ainda assim a série é boa.

Recomendo - o livro e a série. Mas como sempre faço, aconselho ler o livro antes, para que se possa entender melhor a série.

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