#Livros: A Rainha do Castelo de Ar


É com muito pesar que infelizmente tenho de falar que terminei hoje de ler a história de Lisbeth Salander. Sim, hoje acabei a leitura de A Rainha do Castelo de Ar, último livro da Trilogia Millenium, de Stieg Larßon. Já li muita coisa nesses últimos anos (e ainda tenho muito pra ler), mas acho que até hoje nenhum protagonista das histórias que eu li tenha sido tão intenso e tenha me impressionado tanto como Lisbeth Salander, a modelo perfeita do antiheroi que surpreende a todos pela forma contraditória como se comporta sempre. 

Em A Rainha do Castelo de Ar Michael Blomkvist, jornalista da revista Millenium tem a oportunidade de retribuir a Lisbeth os favores que ela lhe fez por várias vezes (todas narradas nos livros anteriores). Ela agora, depois de ter sido resgatada num galpão abandonado e estar internada se recuperando de uma delicada cirurgia para extração de uma bala alojada no cérebro, está sendo acusada pela polícia sueca de diversos crimes, entre eles a tentativa de assassinato do pai, Alexander Zalachenko. A Justiça sueca, por meio do procurador Richard Ekström e do psiquiatra Peter Teleborian, quer que Lisbeth seja novamente internada num hospital psiquiátrico e seja declarada incapaz, assim como fora na adolescência quando também tentara matar o pai, mas dessa vez para sempre. Porém Michael sabe que por trás desse pedido da Justiça está uma conspiração gigantesca que envolve um dos maiores poderes policiais suecos, a Säpo - Polícia Secreta Sueca. Michael desconfia que dentro da Säpo exista um grupo super secreto com amplos poderes de ação e que estaria defendendo Zalachenko, que é na verdade um espião russo refugiado na Suécia e que, para livrar seu protegido russo, estaria disposto a qualquer coisa para calar a boca de Lisbeth, filha de Zalachenko, que se resolvesse falar poderia colocar a perder anos de atuação desse suposto grupo super secreto. Se a suspeita de Michael se confirmar, a Suécia estará numa crise democrática como nunca havia acontecido antes no país conhecido mundialmente pela democracia totalmente consolidada. Ou seja, para Michael e os envolvidos na investigação, como o delegado Torsten Edklinth e a oficial Rosa Figuerola, Lisbeth é apenas a ponta de um iceberg perigoso que está prestes a se romper. E para tentar provar a inocência de Lisbeth, Michael consegue agrupar um número considerável de colaboradores, a maioria deles sem sequer conhecer Lisbeth, mas com uma intenção: fazer justiça por uma pessoa que provavelmente tenha sofrido anos de abuso do Estado. 

Sim, eu sou um grande fã dessa trilogia, tanto pela capacidade de prender a atenção desde o começo como pela forma bem estruturada da história, bem detalhada e criada por quem conhece a fundo todos os assuntos que aborda. Stieg Larßon é para mim um maiores gênios da literatura mundial. Em A Rainha do Castelo de Ar o talento é ainda maior: consegue usar a fórmula conhecida das famosas teorias conspiratórias e transformá-la numa história coerente, verdadeira e que, ao mesmo tempo, denuncia uma prática comum em países europeus: o total desrespeito masculino pela mulher. Aliás, esse tipo de trabalho em defesa dos direitos da mulher já haviam rendido diversos processos e ameaças de morte à Stieg Larßon, que trabalhou na renomada Agência de Notícias TT, da Suécia, mas faleceu em 2004, vítima de um infarto. A Rainha do Castelo de Ar termina com o ambiente pronto para uma continuidade, que realmente começou a ser escrita, porém Larsson não teve tempo de concluir o quarto livro. Uma pena!

Além do mais, A Rainha do Castelo de Ar lança uma discussão instigante: quem investiga os crimes cometidos por quem cria as leis que deveriam proteger as pessoas? Ou como diz a expressão em latim, "quis custodiet ipsos custodes?" (Quem vigia os vigiadores?). Essa discussão em torno de crimes cometidos por autoridades é antiga, mas continua tão viva como nunca. Nós, brasileiros, acabamos de passar por um julgamento de crimes cometidos por quem deveria proteger - deputados e políticos, envolvidos no Mensalão Petista. Como fiscalizar quem cria as leis? Que tipo de instituição pode ser isenta o suficiente para julgar crimes cometidos por autoridades? Como garantir que o jogo de influências não será jogado como estratégia para proteger aliados? No livro de Stieg Larsson a Säpo se vê numa situação delicada: denunciar e prender agentes da própria Säpo envolvidos em casos de total desmando e desrespeito à democracia e à liberdade de expressão das pessoas. Ou seja, a Polícia que investiga a própria Polícia. A discussão que Larsson lança é a seguinte: se nem a Suécia, que tem uma democracia completamente estabilizada e garantida por leis supremas como a YTG, não está imune aos crimes cometidos por quem deveria zelar pelo cumprimento da lei, o que esperar de países com uma democracia jovem e ainda frágil - como o Brasil, por exemplo? Como garantir que uma Polícia que investiga seus pares terá isenção o suficiente para condenar crimes cometidos por quem quer que seja?

Mas ainda assim o ponto alto do livro, como de toda a trilogia, é Lisbeth Salander. Ela encarna o modelo perfeito do antiheroi, aquela que tem todas as características necessárias para ser taxada pela sociedade como doente, como maluca, como perversa, mas que surpreende a todos e se mostra tão comum como qualquer outro. Numa Suécia conservadora, com partidos de direita dominando desde sempre, uma garota  magricela, de estatura baixa e cara de criança apesar de seus 27 anos de idade, de cabelos curtos, visual gótico, socialmente fechada e de personalidade forte, sem pudor para o sexo e tatuagem de dragão pelo corpo inteiro com certeza tem tudo para ser tratada como um "caso especial". Daí para ser considerada maluca basta apenas um psiquiatra sem escrúpulos, como Peter Teleborian. Lisbeth é o modelo da pessoa que resiste a qualquer situação não porque acha a vida bela ou essas coisas românticas: ela quer viver para mostrar às pessoas que ela sabe se virar sozinha. Vive para provar que é forte. Que aguenta qualquer coisa. Qualquer um que tivesse enfrentado na vida o que ela enfrentou teria desistido de viver, mas ela foi firme. Pelo simples motivo de que não daria a nenhum crápula o gosto de ter acabado com a vida dela. Ela precisava viver para provar que era mais forte que quem a machucava. Ela sente esse desejo insaciável de provar que sua condição física não é sinônimo de fraqueza. Pelo contrário: fraqueza não consta no dicionário de Lisbeth. Pelo contrário: Lisbeth é uma garota movida a vingança. Uma vingança que, se nem sempre da forma mais correta, mas com as melhores motivações. Para vingar os maus tratos que a mãe sofria Lisbeth é capaz de qualquer coisa para acabar com o pai Zalachenko. Para se vingar dos que a jogaram num hospital psiquiátrico ela se torna uma das maiores hackers da Suécia e encontra uma forma de destruir a imagem de qualquer pessoa: vasculhando o computador de seus inimigos, e tornando público a sujeira que eles armazenam em seu disco rígido. Lisbeth é sim uma garota fora do comum. Talvez por isso foi tão odiada, e por isso também deve ter chamado tanto a atenção de Michael Blomkvist, que coloca a própria vida em risco para salvar essa garota estranha e totalmente avessa à comunicação.

Ao terminar de ler A Rainha do Castelo de Ar, e consequentemente encerrar a leitura da trilogia, tive a mesma sensação que já tive em outras leituras: "mas já acabou?" - sem falar que se trata de um livro de 685 páginas. Senti um vazio. O vazio de não ter mais nada sobre Lisbeth para ler. O vazio de não ter mais a expectativa sobre a Revista Millenium. É uma sensação estranha, mas boa.

É um livro denso, complexo, como você deve ter notado. Se você curte livros assim - somente se você gostar mesmo - leia a Trilogia Millenium. Recomendo.

Comentários

  1. A resenha ficou muito boa, gostei da parte como você a descreveu, otimo... parabens (Hitalo)

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